Publicações Sobre a Obra de Joedy Marins
Profª Drª Regilene Sarzi
Espaço, lugar, sítio. Cartografias, derivas. Espelhamento, tessituras, tramas, têxtil, materialidade sensível. Como traduzir vivência em poética. Observem estas palavras, elas podem nos oferecer algumas chaves para um diálogo com o trabalho da artista visual Joedy Marins.
Toda poética do espaço é também uma arte dos lugares. O espaço por si só não é artístico, mas ao conferirmos sentido a ele, ao vivenciarmos aquele espaço, ele se torna um lugar, um sítio imantado (nas palavras de Lygia Clark) que nos atrai e do qual podem se tecer experiências artísticas. Segundo Brissac Peixoto (2012), a partir dos anos de 1960, novas relações com novas situações geográficas e sociais mudam o status do artista, o lugar de transformações políticas é também o lugar de transformações artísticas: o etnógrafo converte-se em paradigma da arte contemporânea. Não por acaso, experiências poéticas que envolvem as cartografias (itinerários, territórios) e o nomadismo ou as derivas dominam as exposições artísticas nos últimos anos. Estas estruturas implicam na transformação das condições de percepção, ocupação do espaço e mudanças nos procedimentos de criação e organização institucional da arte no mundo contemporâneo.
De igual forma, Marins saiu do Brasil rumo ao encontro com o outro e consigo, atravessou o oceano, seguindo por terras lusitanas até Guimarães, um dos berços da arte têxtil e lá buscou a experiência do lugar para imantar o continuum de suas investigações poéticas.
As duas obras, Bereshit (Gênesis) e Burnout (Esgotamento) presentes nesta exposição intitulada “Trinta e cinco dias”, tempo que durou a residência artística que Marins desenvolveu na indústria Sampedro, na cidade de Guimarães, em Portugal, fazem parte de um projeto criado pela artista para participar da Contextile – 4ª Bienal de Arte Têxtil Contemporânea, em 2018. A residência foi desenvolvida a partir de uma parceria entre a Indústria Sampedro e a Contextile, já que Guimarães é uma das quatro referências no mundo no que diz respeito a técnica de confecção dos tecidos em Jacquard. A Contextile é uma das mostras mais importantes de arte têxtil no cenário internacional.
Nas obras, a questão da sustentabilidade a materialidade são relacionadas, já que o tema da quarta edição da Contextile foi o (In) orgânico. A Bienal foi composta por mostras paralelas e Marins e duas artistas, uma artista de Taiwan e outra da Polônia, foram selecionadas como artistas residentes para a exposição no Convento de Santo Antônio dos Capuchos, em Guimarães, sendo Marins a primeira brasileira em residência artística na história da Contextile. A pesquisa começou em 2017 e as imagens foram criadas entre dezembro de 2017 e julho de 2018, culminando com a residência, de 35 dias, em julho de 2018, quando as obras foram confeccionadas na centenária indústria Sampedro.
Os trabalhos fazem parte do seu projeto de pós-doutoramento intitulado “Cartografias da experiência: estudos sobre a construção poética – Investigações sobre o continuum, o sagrado e os limites da materialidade na arte têxtil contemporânea”, no qual Marins buscou identificar como os modos de percepção de espaço e lugar da região podem influenciar na poética artística, tomando como base a experiência enquanto estrangeira em um local até então desconhecido. Marins descreve a proposta: “na relação sensível entre o fazer têxtil em meu processo criativo e na cultura portuguesa está o norte para o aprofundamento de minhas investigações plásticas. Importa aexperimentação dos limites da materialidade na arte têxtil contemporânea. Tomando-
se como princípio o distanciamento do lugar íntimo, familiar, a proposta prescinde a busca por ressignificação de um novo espaço como lugar como mote para a poética artística, especificando-se investigações sobre a produção têxtil artesanal em Portugal”.
As obras despertam nossa curiosidade e nos instigam a buscar seu processo de criação e produção, a sua materialidade. E quando nos deparamos com as gigantescas máquinas que as teceram, ficamos maravilhados com a sutileza com que uma imagem tão delicada cuja base é o pensamento artesanal se traduz em beleza, em matéria sensível, fruto da fusão entre arte e a tecnologia, que de certa forma, humaniza aqueles maquinários industriais pesados.
Trinta e cinco dias, medida de tempo se revela em duas imagens tecidas no lugar que Marins viveu e lá teceu, pelo espelhamento entre o artesanal e o industrial, entre o orgânico e o sustentável, a experiencia que nos leva à contemplação da belezae da delicadeza da arte têxtil contemporânea.
(Texto curatorial de Regilene Sarzi para a exposição “Trinta e cinco dias”, de Joedy Marins. Galeria da FAAC – UNESP. Inverno de 2019)
Séfora Soraia da Costa e Silva
A Arte Têxtil Brasileira: uma análise das obras de Joedy Marins na Bienal Internacional de Arte Têxtil Contemporânea em 2018
Prof. Me. Oscar D’ambrosio
A costura, o bordado e os retalhos integram a trajetória existencial de Joedy Marins, artista plástica e professora da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp de Bauru.
Nascida em Assis, SP, em 1971, cresceu na Capital Paulista, onde viveu até 1991. De sua infância, lembra justamente de acompanhar a avó em atividades de costura e bordado, enquanto o pai, professor de desenho geométrico, fazia casas de papelão ou massinhas preparadas com receitas caseiras para ela brincar. Nesse universo de livre experimentação de materiais, surgiram as primeiras roupas para bonecas e a venda de bolsinhas de crochê na escola.
A escolha pela área de artes visuais já era uma certeza por volta dos 14 anos, período em que realizou os primeiros cursos de arte, numa vertente mais acadêmica. Como costuma acontecer para quem decide por essa área, no momento de prestar vestibular, os pais apresentaram outras opções similares, como arquitetura ou publicidade, mas Joedy seguiu seu sonho e obteve o apoio e respeito familiar.
Estudou na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde ingressou em 1989 e concluiu o bacharelado em Artes Plásticas em 1991, tendo aulas, entre outros, com mestres como Itajahy Martins e Caciporé Torres, além de Norberto Stori, professor também do Instituto de Artes da Unesp, em São Paulo. Ainda na universidade frequentou cursos de Cenografia com a Companhia do L’Opera de Paris e com J.C. Serroni, de quem foi assistente na montagem de instalações para a XXI Bienal Internacional de São Paulo de 1991 e a III Bienal de Santos. Foi um período fundamental para estabelecer novas relações entre o espaço e a plasticidade. Em 1991, opta por sair da Capital e muda- -se para a cidade de Bauru, onde passa a trabalhar com oficinas e ateliês de arte junto à Secretaria da Cultura, além de aprofundar o desenvolvimento de seu trabalho plástico. Três anos depois, ingressa no Curso de Mestrado em Comunicação e Poéticas Visuais, na Faac. Sua pesquisa aborda justamente a experiência na Bienal de São Paulo, conceituando e interpretando poeticamente instalações. Tinha participado de um projeto que envolvia cinco andares, e percorrer o espaço da mostra sem público lhe permitiu um diferenciado acesso às obras, refletido em desenhos e leituras pessoais inclusos na dissertação.
Em 2000 ingressa no Curso de Doutorado em Ciências da Comunicação (Comunicação e Estética do Audiovisual) da USP mediante bolsa de estudos concedida pela Capes. Sua ideia inicial era continuar estudando instalações de arte contemporânea, mas a obra Legado, com a qual obteve, em 2002, a medalha de prata no Salão de Artes Plásticas de Jaú – Modalidade Contemporânea, mudou sua trajetória. A obra integrava uma reflexão iniciada anos antes sobre como criadores da arte contemporânea mantinham laços com a costura e o bordado em suas manifestações. Surgiu assim a obra premiada, uma colcha com 31 quadrados, alusiva à sua idade então, preenchidos com elementos da vida feminina, como alfinetes de fralda, laços e absorventes.
O reconhecimento no Salão e o diálogo com a comissão julgadora levou-a a tornar esse trabalho o motivo de sua tese, numa pesquisa que continua até hoje sobre o construir feminino da existência, com a jornada no trabalho e em casa, num perene tecer da própria vida e de uma outra que pode ser gerada no ventre. A pesquisa, intitulada Legado: Gestações da Arte Contemporânea – Leituras de Imagens e Contextualização do Feminino na Cultura e na Criação Plástica, relacionou o desenho com outras linguagens e suportes, enfatizando a produção têxtil de Joedy no próprio percurso artístico. Em 2008, aprovada em concurso público na Faac, passou a dedicar-se à pesquisa e ao ensino no Curso de Educação Artística, com habilitação em Artes Plásticas, atual Curso de Artes Visuais. Seu principal interesse está focado na pesquisa plástica e nos processos criativos, estabelecendo uma constante reflexão entre a produção e a teoria. Nesse sentido, criou o grupo de estudos em Artes Visuais e Audiovisuais – grAVA, no qual também produz junto aos alunos.
Atualmente, a organicidade da linha e os formatos e significados dos bulbos estão no centro de seu interesse. O sentido simbólico das tramas é uma motivação, já que elas se fazem presentes numa folha da natureza, nas sinapses do cérebro e na construção dos bordados. No âmbito da universidade, vê os elos entre o fazer artísticoe o teórico como grande desafio para sua pesquisa e para as dos seus alunos. Um caminho apontado é o que ela mesma trilhou. Tornando a reflexão sobre o fazer uma maneira de conhecer melhor os seus processos artísticos e a sua identidade, regida pela sensibilidade e delicadeza.
(Texto de Oscar D’Ambrosio. “Bordando a existência”. Revista UNESP Ciência, jun, 2015, n. 64, p. 46-7)
Profª Drª Cleide Santos Costa Biancardi
Uma das maiores conquistas da arte no século XX foi a total liberdade de expressão alcançada pelos artistas, concretizada na própria elaboração das obras com materiais e meios inovadores e imprevisíveis. Tal fato resultou obviamente significativa mudança nas relações da arte com o público, tanto pela qualidade da produção quanto por sua quantidade e diversidade. A cultura contemporânea no campo das Artes em geral ampliou de modo
considerável nossa percepção sensorial, visão, audição, tato e mesmo a percepção olfativa e gustativa explorada por algumas obras como instalações, papeis livros e objetos artísticos nas artes plásticas. Este fenômeno primou pela ousadia, pela crítica e pela exacerbada experimentação de tudo que existe na sociedade e na natureza. O iniciador dessas ações for Marcel Duchamp, que converteu o objeto comuns em obras de arte, os readymades, com propósitos de chamar a atenção do público para a função da arte e não apenas para seu caráter morfológico, por vezes histórico,sociológico, como fora até os princípios do modernismo.
Duchamp, na opinião dos maiores críticos da Arte, estabeleceu um divisor de águas em relação à Arte, passando o enfoque, da forma de linguagem, para o que ela diz, ou seja, a natureza da obra transforma-se, de uma questão de morfologia, para uma questão de função. Até o início da obra da arte moderna, no século XIX, e em todo o período anterior, o panorama da arte esteve relacionado com suas virtudes formais, contudo “(...) toda arte depois de Marcel Duchamp é conceitual em sua natureza porque só existe conceitualmente. (Joseph Kosuth, N.Y., 1969) A nova arte estabeleceu relações com tudo que há no universo e em todos os indivíduos. Utilizando significantes materiais e mentais, individuais ou coletivos, valiosos ou paupérrimos, novos e velhos, criou signos que extrapolam qualquer noção de tempo espaço, real, verdadeiro, imaginário ou falso. Se a arte conceitual, de um lado simplificou a atuação dos artistas, de outro aumentou a participação do espectador/fruidor, pois sem ele não acontece a experiência estética.
A mostra de Joedy Marins está inserida nesse contexto da arte contemporânea, conceitual, materializada numa instalação cujos objetos artísticos, bricolages, desenhos e aquarela têm como temática o imaginário infanto-juvenil. As Caixas Internas contêm muitos significados - passados e presentes - uma vez que caixas são objetos universais presentes em todas as culturas, desde os tempos mais remotos, com formas e funções incontáveis.
Nas Caixas de Joedy há muitas “coisas” conhecidas, presentes no imaginário: bonecas - inteiras ou quebradas, “carambolas” - saquinhos cheios de grãos para jogar, bonecos de monstros, soldadinhos, modelagens, tudo com ar de passado. Velho, sujo, amarrotado, gasto, incompleto...
Serão mesmo memórias do passado? Ou a artista quer provocar o espectador para abrir também suas “caixas”, das lembranças e da imaginação, “num plano misto de devaneio e não no plano dos fatos, que a infância permanece em nós viva e poeticamente útil (...), por essa infância permanente, preservamos a poesia do passado, como diz o filósofo Gaston Bachelard.
Para o público que visita essa exposição, caberá refletir, nesse início do novo milênio, sobre os valores puros que ainda estão guardados nos sótãos oi porões da mente, resgatando-os para a vida atual, carente de alegria, pureza, espontaneidade e prazer. A proposta de Joedy é fazer com que cada uma abra suas “Caixas Internas” e trabalhe, de forma lúdica, seus conteúdos mágicos e eternos. E esta é a verdadeira função da arte.
(Texto curatorial de Cleide Santos Costa Biancardi, professora doutora em artes
visuais, para a exposição Caixas Internas. Centro Cultural de Bauru, 2001)